terça-feira, março 26

Cheiros que vivi


Quando criança eu gostava do cheiro do café que minha avó passava de manhã cedo. Era cheiro de casa quente, cheiro de manhã cedo, de família e de mais um dia. Mais tarde, na adolescência, gostava de cheiro de pão quente que sentia quando passava em frente e padaria da Rua das Hortas, por volta de 16h, ou da padaria do João Paulo, que lembro dizerem que era de um português, mas nunca o vi. Gostava também do cheiro de batata-frita da lanchonete do Lusitana que ficava próximo a minha escola, no Centro. Era cheiro de alegria, de novidade, trocado no bolso e amigos por perto.
E o cheiro doce do setor de bombons da Lobrás, na Rua Grande. Era cheiro de contravenção, de bolsos criminosos e variedade para dividir. Gostava do cheiro de alfazema que sentia no meu vô e do perfume cítrico que, ainda hoje, é preferência de mamãe. E ainda lembro do perfume do produto que vovó costumava colocar no cabelo.
Lembro do cheiro de terra molhada da primeira chuva do ano e do calorzinho que subia do asfalto naquele primeiro momento e depois o frescor que a água causava. Das goteiras e biqueiras, das poças rasas d’água e do cheiro bom que a chuva deixava nas plantas.
Em dia de sol adorava o cheiro de maresia. Ahhhh esse cheiro, cheiro de mar que impregnava o carro do meu tio quando ele nos levava à praia. Era puro cheiro de infância, de sorrisos, de mãos dadas, de primos e alegria. Cheiro de cumplicidade, de irmandade. Associações que a gente faz porque passou por aquilo, porque foi aquilo.

Nos meses de vento forte, como agosto e setembro, o cheiro da Praça Deodoro era de oitis e folhas novas. Cheiro de natureza renovada. Lembro desse tempo de menina, lembro bem dos cheiros daquela época.
Hoje, ao passar na velha praça, sem precisar apurar o olfato, sinto apenas cheiro do óleo quente e queimado das bancas de pastel e batata-frita, despejado aos pés das antigas árvores cheias de cupim.
Nas praias, só consigo sentir cheiro de esgoto que jorra de prédios vistosos e de córregos que vão para o mar, que outrora serviam de pocinha em minhas brincadeiras. Da chuva, sobraram os perigos dos bueiros abertos e o cheiro de medo dos desabrigados. Cheiro de perigo com o excesso de buracos nas vias, que se transformam em poças d’água sem fundo quando cai qualquer pingo d’água.
Hoje, quando passo na Camboa, só sinto cheiro de fezes e urina de burros, que dormem e acordam na praça que margeia as avenidas da área. Passagem diária de milhares de pessoas.
Quando passo no João Paulo, não sinto mais cheiro de pão. Próximo a feira só sinto cheiro de legumes velhos estragados, que são abandonados no chão por ambulantes que teimam em vender seus produtos fora do mercado.
Além desse cheiro, ainda posso sentir cheiro de sofrimento, de drogas e de degradação dos fumadores de crack que habitam o local e deixam pedaços de si pelo caminho quando passam para furtar trocados e trocar pela pedra maldita.
Pelos antigos recantos da minha cidade, não consigo mais sentir cheiros agradáveis e me lembrar do tempo que já passou. Só consigo sentir cheiro de medo de assaltos, de fumaça de ônibus velhos, de decadência e tristeza. Cheiros que não gosto e não queria sentir, mas que sou obrigada a conviver e só me fazem sentir mais falta dos cheiros bons que vivi.

Ana Coaracy
25032013

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