sábado, agosto 22

Jesus era peripatético...



Max Gehringer *
Numa das empresas em que trabalhei, eu fazia parte de um grupo de treinadores voluntários.
Éramos coordenados pelo chefe de treinamento, o professor Lima, e tínhamos até um lema:
"Para poder ensinar, antes é preciso aprender" (copiado, se bem recordo, de uma literatura do Senai).
Um dia, nos reunimos para discutir a melhor forma de ministrar um curso para cerca de 200 funcionários. Estava claro que o método convencional - botar todo mundo numa sala
não iria funcionar, já que o professor insistia na necessidade da interação, impraticável com um público
daquele tamanho. Como sempre acontece nessas reuniões, a imaginação voou longe do objetivo,
até que, lá pelas tantas, uma colega propôs usarmos um trecho do Sermão da Montanha como tema do evento. E o professor, que até ali estava meio quieto, respondeu de primeira. Aliás, pensou alto:
- Jesus era peripatético...
Seguiu-se uma constrangida troca de olhares, mas, antes que o hiato pudesse ser quebrado
por alguém com coragem para retrucar a afronta, dona Dirce, a secretária, interrompeu a reunião
para dizer que o gerente de RH precisava falar urgentemente com o professor.
E lá se foi ele, deixando a sala à vontade para conspirar.

- Não sei vocês, mas eu achei esse comentário de extremo mau gosto - disse a Laura.
- Eu nem diria de mau gosto, Laura. Eu diria ofensivo mesmo - emendou o Jorge,
para acrescentar que estava chocado, no que foi amparado por um silêncio geral.
- Talvez o professor não queira misturar religião com treinamento - ponderou o Sales,
que era o mais ponderado de todos.
- Mas eu até vejo uma razão para isso...
- Que é isso, Sales? Que razão?
- Bom, para mim, é óbvio que ele é ateu.
- Não diga!
- Digo. Quer dizer, é um direito dele. Mas daí a desrespeitar a religiosidade alheia...
Cheios de fúria, malhamos o professor durante uns dez minutos e, quando já o estávamos
sentenciando à fogueira eterna, ele retornou. Mas nem percebeu a hostilidade. Já entrou falando:
- Então, como ia dizendo, podíamos montar várias salas separadas e colocar umas 20 pessoas
em cada uma. É verdade que cada treinador teria de repetir a mesma apresentação várias vezes, mas...
Por que vocês estão me olhando desse jeito?
- Bom, falando em nome do grupo, professor, essa coisa aí de peripatético, veja bem...
- Certo! Foi daí que me veio a idéia Jesus se locomovia para fazer pregações,
como os filósofos também faziam, ao orientar seus discípulos. Mas Jesus foi o Mestre dos Mestres,
portanto a sugestão de usar o Sermão da Montanha foi muito feliz.
Teríamos uma bela mensagem moral e o deslocamento físico... Mas que cara é essa?...
Peripatético quer dizer "o que ensina caminhando". Do Latim peripateticu; Grego peripatetikós,
que gosta de passear; adjetivo: que ensina passeando.

E nós ali, encolhidos de vergonha.
Bastaria um de nós ter tido a humildade de confessar que desconhecia a palavra
que o resto concordaria e tudo se resolveria com uma simples ida ao dicionário.
Isto é, para poder ensinar, antes era preciso aprender.
Finalmente, aprendemos. Duas coisas.
A primeira é: o fato de todos estarem de acordo não transforma o falso em verdadeiro.
E a segunda é que a sabedoria tende a provocar discórdia, mas a ignorância é quase sempre unânime.
* Artigo publicado na Revista VOCÊ S.A.

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