terça-feira, agosto 11

Morri e estou no inferno




Ana Coaracy
Ela sentia muito calor. Sentia a camisola pregando no corpo. Sim, era uma noite quente, contudo nada que seu ventilador barulhento não resolvesse. Mas ela não conseguia sentir o vento, apenas o suor escorrendo por suas costas. Aí ela resolveu abrir os olhos e se assustou. Não via nada. Tudo era breu. Pensou imediatamente: "Morri e estou no inferno".
Em um minuto ela dormia e em outro estava morta e no inferno. O que podia ser pior? Antes de entrar em desespero e chorar, ela parou, respirou bem fundo e tentou manter o fio de calma que ainda lhe restava.
Tinha de descobrir por que tinha ido parar no inferno. Isso não era justo. Tudo bem que não era um primor de bondade, não gostava de dar esmolas a crianças e pedintes, mas tinha lá suas explicações básicas para isso. Ela achava que os acostumava mal. Poxa, ela também não era tão má assim.
Na verdade tinha até seus momentos de boa samaritana. Sabia dar conselhos razoáveis e era bem quista entre os amigos. Todos gostavam ou pelo menos pareciam gostar, dela. Que diabos havia acontecido?
Será que religião realmente salvava? Por que se foi isso ela já devia estar no inferno há séculos. Religião nunca foi seu forte. Rezar, só em momentos de desespero e ela já começava a pensar que este era um bom momento para começar o Pai Nosso.
Padres, pastores, bispos, rabinos, etc, nunca lhe encheram os olhos. Ela sempre achou que eles não tinham o direito de dizer o que estava certo ou errado, por que também pecavam. "Como posso ser absolvida de meus pecados por um padre que nem sei se é realmente casto?", questionava. Estes questionamentos ridículos podem ter lhe valido uma bela passagem para a terra da besta-fera.
Ela estava bem agoniada e já se preparava para ficar ali, na escuridão do inferno. Então resolveu não se desesperar mesmo, já que não tinha jeito. Quase pensou como Marta Suplicy no momento de crise aérea.
Já que não enxergava nada mesmo, fechou os olhos, sentou-se em posição de lótus e se concentrou. Resolveu que teria que ter muita calma nesta hora, pois imaginou que aquele devia ser apenas o primeiro estágio do inferno, afinal ainda não tinha visto os rios de fogo e os corpos carbonizados gritando e rangendo dentes. Sim, estava tudo no mais completo silêncio e escuridão.
Cogitou se não estaria num limbo, ou, quem sabe, um purgatório. Ela ainda podia ter esperanças de terminar seus dias tocando harpa sobre uma nuvenzinha e com um belo par de asas grudadas nas costas. Isso a fez sorrir.
O que mais a incomodava e atrapalhava a concentração, era tentar entender por que, sendo tão jovem já merecia morrer e estar no inferno. Que coisa tão ruim havia feito? Foi por que não amou seu pai o suficiente? Mas ele nem lhe quis quando nasceu. Isso não era justificativa? Ela nem o odiava, só não o amava. Ah, mas não amava tantas outras pessoas.
Será que era isso? O rol dos amados era muito menor que os não amados. Nossa, que pecado. Tá no inferno. Poxa, mas eram não amados e não odiados. Assim não vale. Desse jeito meio mundo vai para o inferno. As normas são muito rígidas. Não matou, não roubou, não cobiçou, ops... foi isso!!!!!!!! Então é aceitar, pois já está feito. Era mais forte do que ela. Coisa dos tempos de adolescente, não tinha como mudar. Eles até pensavam que era coisa dos Céus! Agora ela sabe, não era! Mas valeu a pena. Tudo vale a penas se a alma não é pequena, pensou e emendou... e se vai morrer e ir para o inferno.
Já conformada, ela resolveu deitar novamente. Seu corpo ardia de tanto calor e não via nada mesmo. Pensou uma última vez naquele amor e sorriu. Faria tudo novamente, mesmo que soubesse como ia acabar (morta e no inferno). Suspirou e pensou em dormir.
De olhos fechados, começou a sentir uma brisa gostosa. Nos ouvidos um barulho de turbina do seu velho ventilador. Abriu os olhos e viu tudo ao seu redor. A mãe abriu a porta do seu quarto e lhe disse; "chegou luz". Ela sorriu, fechou os olhos e sussurrou..."faria tudo novamente". E dormiu.


OBS: baseado nos sonhos de minha sobrinha Liliana (na época com 7 anos, atualmente com 9 anos), que certa noite acordou no escuro e pensou ter morrido e ido pra o inferno.

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